Tuesday, October 10, 2006

hora do angelus

dois dedos de martini e uma lista de crimes na cabeça. que mais precisa um homem para ser feliz ?

uma noite a vestir-se de perfeita, não fosse a cereja de má qualidade, pensou de soslaio. beber a calda não combinaria com o sangue dos seus planos. alfinetou-a. como se o palito fosse um estilete de costume, uns dois dedos abaixo do umbigo. mas não reclamou deste primeiro deslize em tanto tempo de convivência. há que se ter compaixão, pensou condoidamente. cerejas de boa qualidade não são servidas em um bar cujo forte era a vista. e que mesmo assim, tinha mantido razoabilidade em muitas. laivo de generosidade que lhe apascentava os demônios que provocavam a sua santidade com tantos questionamentos sobre seus atos inócuos, e que eles sim, demônios a cumprir papel santo, como anjos rebeldes.

o pensamento lhe tomou a cabeça involuntariamente, só em pensar no sangue que iria derramar madrugando o ato. mas por por favor não. não pensem em sangueira, salmoura, cabidela. nisso mais do que um esteta, ele era um religioso. e pra ele derramar era só uma figura de linguagem, homem de metáforas e analogias, já que meleiro não era com ele. com ele era a sofisticação em forma de lâmina. a perfuração estreita. o corte sem deixar refluir o sangue, embainhado no momento da ruptura semi-cilindrica. o que lhe exigia uma preparação assaz extenuante, como se tenista fosse. fortalecer os pulsos era necessário, e que pulsos homem, que os tinha. com igual fervor também primava pelo disfarce, que lhe permitia o gozo do martini não permitido aos da sua irmandade, tido e visto ainda assim como pecado venial.

lá de cima, no bar ao pé da sé de olinda, o porto do recife podia ser visto em panorâmica. mantidas a distância e proporção que permitia a visão, mas nunca a promiscuidade de tomar-se com parte da paisagem, onde havia nascido mas jamais reconhecido como um de seus filhos babados de pernambucaneidade. apesar de por tantos, já ter feito para isto.

costumava chegar ao entardecer. duas ou três mesas ocupadas. a sua preferida como por desejo realizado sempre vazia a sua espera. o movimento sutil da mão, branindo com suavidade a firmeza do pedido de imediato reconhecido, já era do conhecimento dos garçons que traziam aquela música no ar sorvida como um cântico: duas pedras de gelo. igual tilintado. bianco duce. e em vez de limão, cerejas. duas. de preferência não simétricas. taça nunca mais de dois terços, que era homem regrado.

brinde mais do que sagrado, sob a luz perfeita do entardecer, manto púrpura bordado pelo ouro dos últimos raios de sol fronteiriços a noite que tomava o cair da tarde num quase negro a engolfar réstias de nuvens azuis que plasmavam o branco a esvanecer-se. quase caravaggio. perfeito!, mentalizava-se. contrastando com a plena brancura da nave, paramentado para o crime, ao som de orações de mesmices.

exatamente as 15 para as seis, em tais dias, levantava-se após o segundo martini, ainda a meio. já paga a importância acrescida da gorjeta a mais cinco por cento, o que também lhe acrecia a alcunha, discreta, de homem dos 15. pelos garçons afirmado, nunca como galhofa e sim como separação dos fregueses comuns, tediosos, e daquele que se despedia sempre com um gesto santo, não sabiam o porquê depositava-lhes um sorriso que lhes trazia paz, fiéis escudeiros, bandejas coladas ao peito, homenagem que se fazia espontânea e inconscientemente, como se lhes obrigasse imã no peito.

em plena missa das seis lá estava ele, à carater, batina levemente surrada, convertido, gesticulando o latim de costume, consagrando o sangue do corpo de deus, com a repugnância que aquele vinho de quinta lhe causava. ainda mais depois do martini. mas, ato de fé, ato de fé. mantinha a postura até o fim e rezava e rezava para os fins, antecipando o sacrificio dos cordeiros de deus a serem imolados bem mais tarde, nas madrugadas de pedras úmidas de olinda. mais de mijo do que do orvalho, o que confirmado o ato mijador, resultava em último do pecador mijão.

graças a ele, ainda que lentamente, a razão de nunca mais que três mijões por semestre, o perfume das ramas derramadas sobre os muros dos casarios, outrora ainda mais ornamentados, iniciaria um movimento ainda que pendular a sobressair-se sobre a catinga entranhada nos rejuntos de pedras seculares e portas não menos antiquas, que se assim não fosse seriam destruidas pela vanila da quimica ultrajante das urinadas, ainda que displicentemente. despejadas sempre com mais vigor naquilo que o casario tinha de mais valioso, ainda que por abandonada assim não parecesse.

de quebra, as madrugadas de olinda por longo tempo permanceriam mais seguras para os garçons, os amantes e transeuntes da madrugada que, apesar dos medos, dos ditos e boatos, poderiam ir e vir em paz. desde que não mijassem fora do caco. e sobretudo acima do meio-fio. o que nem desconfiaria a polícia, também em risco se acaso apertada chegasse a isso, de que na catinga do mijo acima do sangue residia a química do ministério.

e assim foi. golpes e golpes de misericórida a fio. cidade mal cheirosa aprendendo a respirar outros perfumes novamente.

faina terminada, resmungava olhando para o crucifixo que lhe cobrava, mais por hábito do que por penitência, reza de boa noite. ao que se permitia leve blasfemada dada de ombros, suposto de antemão ter sido perdoado por mais que boa ação, ação de limpeza. o que lhe garantia um sono absolutamente tranquilo com sua fé e sua consciência em nada extenuadas, mas que por via das dúvidas deixava sempre o arremate no ar: — não gostou? então que vá se queixar ao bispo.

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