Saturday, December 02, 2006

chicle de caixinha

amor de uma vida inteira, não tinha dúvida. não se tratava apenas de uma paixão adolescente, daquelas intepestivas a ponto de ser rabiscada no caderno oito matérias inteiro mas que como todo amor adolescente corria o risco de perder-se no chiclete cuspido na próxima esquina.

ela era linda. cabelos ondulados levemente ao chegar a cintura. um andar leve, 13 anos e a delicadeza de quem pode fraturar-lhe a vida para sempre, sorrindo inocentemente sem a malícia prestes a despertar como em seu segundo ano de menstruação.

mas havia um problema, em todo aquele amor surgido numa visão, dela, ele menino jogando bola na rua de terra e lama, num bairro popular de uma cidade ainda em tempos de ônibus elétricos. tinha os dentes podres, quatro, já cacos, doravante seu terror ao dentista.

entre a excitação dos encontros nas calçadas das tardes, os primeiros amassos quase incidentais e aleatórios ao fluxo dos transeuntes, o medo de soprar-lhe podridão na boca, aquela que todos teremos um dia mas devidamente resguardada num caixão.

era amor mudo, a meia distância, amedontrado, assim que passava o efeito cigarro, chiclete, hortelâ garoto, e sabe-se lá o que inventado para disfarçar o hálito amaldiçoado, ele retomava distância que o vento contrabandeava para amada.

tão puro de sentimentos, tanto amor, o peito limpo, os sonhos lençois de cetim perfumados, as mãos prontas a dar-lhe o inacessível mas a boca podre cujo hálito jamais ousara perguntar a ela o cheiro. como poderia, como se faz isso, quando se tem 13 anos e se namora a menina mais bonita e rica do bairro?

esquece isso, amigos do futebol, consolam. quando se ama isso não tem importância. como não tem importância? sabia bem o que tinha na boca, assim como sabia o que tinha na alma. um sofrimento de igual para igual com o amor que descobria cada vez mais amordaçado pelo estado da sua bôca.

gostaria tanto de falar de pertinho, de dizer-lhe coisas com cheiro de franboesa, de demonstrar-lhe amor com hálito de um dulcora inteiro mas sem disfarce. sem ter de virar-lhe o rosto na hora em que ela puxava-o pela nunca e ele afastava-se defensivamente, o que acabaria premonitoriamente afastando-a para sempre.

tomara uma decisão. pelo amor tudo, já vira nos filmes de romeu e julieta, love story. há que se fazer sacrifícios, há que se ultapassar limites, há que se lutar para se conseguir alcançar a paz. e ele iria fazer isso. se por ela enfrentara tudo, inclusive aquele monstro de dois metros de altura, seu cunhado, disposto a trucidá-lo em nome da moral da irmã mal saída da menarca, porque não enfrentar o doutor paulo, o dentista boa praça do bairro? amanha, oito e meia da manhã em ponto estaria lá. iria limpar a boca, sua obra secreta de amor, imaginava o dia em que falaria de frente, sem aquele gosto ardido de um spray que durava meia fala e só atormentava no bolso a espera do momento que nunca viria para repetir mais doses escondidas, pior ainda a vergonha se descoberto com a boca na botija.

oito e meia da manhã, abriu o portão e sentou-se a espera naquela casa consultório, quarto da frente tortura, terraço espera, sala passagem quando não servia refeições.

sorriso de boas-vindas do doutor paulo, de quebra e testemunha um desafeto do futebol de rua também a espera. entrou primeiro, dele tomou a vez. desabou na cadeira, guardanapo na mão, e o pedido abra a bôca.

pensou nela como nunca, a medida que a anestesia ia sendo preparada. tudo finalmente iria ficar azul, a boca limpa como quando se sai do dentista, como se os dentes tivessem nascido de novo. ela sentiria o gosto do seu amor em cada papila da lingua que também era contida nos beijos que ele mesmo sentia gosto de travo. por toda uma vida lhe diria seu amor de pertinho, mais de pertinho do que qualquer amor do mundo pois o dele era maior.

no meio dos pensamentos a seringa perigosamente perto da sua boca, lembra da agulha da seringa avolumando-se, o coração disparando e tudo escurecendo. de nada mais se lembrou, nem dela.

pelo menos poderia ter arrancado unzinho que fosse, ainda que nem fosse notado pelo hálito viciado no odor dos outros três. mas nada. doutor paulo levou o menino para casa, não sem antes, anunciar ao desafeto do futebol — desmaiou! deste tamanho com medo de dentista.

avisou-lhe de que nada mais poderia fazer. era perigoso qualquer procedimento com ele naquele estado. teria de procurar um dentisa que lhe aplicasse anestesia geral, hipnose, ou tratamento para curar aquele medo fóbico. mas como um menino pobre que namorava a menina mais bonita e rica do bairro poderia fazer isto ainda mais sem nenhum apoio dos pais?

o amor, até mesmo o maior do mundo, as vezes não resiste a uma simples agulha de injeção, ainda que seja de anestesia. aprendeu isto quando foi ele mesmo o chiclete cuspido na esquina.

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